Bioética e hipnoterapia
A Bioética pode ser definida como “o estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e dos cuidados da saúde, na medida em que esta conduta é examinada à luz dos valores e princípios morais”.
Por outro lado, desde Hipócrates, a ética médica é entendida como a compreensão moral que o médico tem frente ao seu comportamento enquanto profissional. (1)
Estes conceitos podem ser estendidos a todo o vasto universo que constituem as ciências da saúde, uma vez que praticamente todas derivam de um denominador comum: cuidar da saúde do homem e de suas relações consigo mesmo, com os demais e com o ambiente que o cerca. Isto expande os horizontes da bioética, uma vez que abrange não só a conceituação de saúde como também a segurança nos relacionamentos que o ser humano tem com todos os elementos que fazem parte do seu campo comportamental.
Lembremo-nos ainda que a bioética é abrangente, tanto na sua conceituação quanto na sua estrutura, com uma série de paradigmas que podem ser encontrados em várias instituições como na revolução francesa (1789) e na constituição americana (1787), que estabelecem a igualdade, fraternidade e a liberdade que devem reger os relacionamentos humanos. Até mesmo, nas relações industriais e comerciais encontramos lemas que regem o trabalho do homem nas instituições, como o das Industrias Reunidas Francisco Matarazzo, que se baseavam nos conceitos de Fides, Honor e Labor (fé, honra e trabalho) existentes em as suas logomarcas e que pretendia abranger o trabalhador nas suas relações de trabalho, não só com a instituição, mas também entre os companheiros e com um poder superior que tudo vê e preside. Aduzindo mais ainda, encontramos tais paradigmas nas relações inter-pessoais que culminaram na formação de irmandades multiprofissionais que se transformaram em estruturas guardiãs dos detalhes das profissões de seus membros. Assim, na Maçonaria os princípios de igualdade, fraternidade e liberdade, são vigentes e conservados através dos tempos. Poderíamos então somar a esses princípios a irmandade, necessária para demonstrar que o homem é um ser social e sociável e da interdependência com seus semelhantes, que deve reger suas ações. Este seria um dos pilares em que se assenta o motivo da existência das leis que regem todos os países.
Esse conceito humanista por essência e natureza, tem outra vertente na Organização Mundial de Saúde que, em função do desenvolvimento técnico e científico, propõe seja a saúde “um bem-estar físico, psíquico e social” (subjetivo) em substituição ao de “ausência de doença” (objetivo).
Com conceituação de tal abrangência, a bioética somente poderia deixar de ser exclusividade da medicina. Atualmente, diferentes profissionais têm não só o direito, mas também a obrigação de refletir sobre a saúde e qualidade de vida das pessoas, na medida em que se preserve a autonomia do indivíduo (1).
É evidente que entre os conflitos que emergem dos indivíduos consigo mesmo e com os outros, surgem das ansiedades, das tensões e do estresse produzido pelos atritos que envolvem sua autonomia e a dos circunstantes em seus relacionamentos. Tais conflitos são inatos ao ser humano em sua constante luta em prol de objetivos e ideais e existem em função das necessidades de se adaptarem ao ambiente que os cerca e onde tem que interagir com os acontecimentos, ocorrências diuturnas que os acometem constantemente. Nesse ambiente, há ainda a necessidade de interagir com os outros que também ocupam o mesmo ambiente em que atua.
Necessitando agir em função de todos os elementos internos e externos que o influenciam, cada um toma consciência desses conflitos, de uma forma ou de outra, podendo aceitá-los ou não. Como a forma de encarar os problemas e os conflitos que constantemente o acometem e o ameaçam varia de pessoa a pessoa, o indivíduo tem que optar por soluções próprias que constituem a sua autonomia.
O homem está se atritando constantemente com tais conflitos e quando toma consciência desses conflitos, ele só será ético se permitir-se agir coerentemente consigo mesmo, podendo lidar com suas emoções e com a realidade do mundo.
Para Beachamp e Childress professores do “Kennedy Institute of Ethics” (2) a bioética baseia-se em três princípios: Beneficência e Não Maleficência, Autonomia e Justiça.
BENEFICÊNCIA E NÃO MALEFICÊNCIA
Este princípio ressalta o altruísmo do indivíduo para com seu semelhante e a complacência para com os outros, sendo que ele deve ser portador de outras qualidades, como boa índole e boa vontade que possibilitem a produção de atos que se traduzam por beneficiar e não causar malefícios.
Por ações beneficentes podemos considerar não matar, não causar dor, não incapacitar, não ferir, permitir o que é bom. Incluem-se aqui as ações filantrópicas que correspondem ao atendimento às necessidades de saúde e de preservação dos semelhantes. Estes princípios emergem do desejo que uma pessoa nutre em cuidar de outra que tem sua capacidade reduzida e consta dos princípios hipocráticos, como uma das virtudes do médico.
Dir-se-ia que a beneficência inclui o atendimento às necessidades importantes e legítimos do outro e que o profissional, dentro de suas possibilidades de trabalho, evite danos, males ou ofensa ao seu paciente. Aqui cabe a regra de ouro que recomenda que “o tratamento do outro deve ser feito da mesma maneira como você gostaria de ser tratado”.
A beneficência e a não-maleficência baseiam-se nos valores do paciente e poderão ser questionados quando este considerar como não sendo os seus, quando não fizer parte de sua personalidade e formação ou se sentir prejudicado pela atuação do profissional.
Considerando que:
Qualquer técnica de psicoterapia pode ser aplicada sob hipnose;
Que a hipnose não é uma forma de psicoterapia, mas apenas uma maneira de facilitação da psicoterapia;
Os profissionais que são capacitados a fazer a fazer tratamentos com psicoterapia, terão na hipnose um valioso instrumento no emprego de procedimentos especializados que só podem ser obtidos com ela;
Além da sugestão direta, muitas são as técnicas que podem ser utilizadas em psicoterapia.
Conclui-se que o terapeuta deve ser perito no conhecimento das técnicas hipnoterápicas e deve ter também conhecimento e experiência no campo da psicoterapia e de suas aplicações nos demais ramos das ciências da saúde. O tratamento será feito então antes sob hipnose, do que pela hipnose.
Em se tratando de saúde mental ou de aplicação da hipnose no tratamento de moléstias psicossomáticas, esses princípios se justificam pelo fato de que, de uma maneira ou de outro, a hipnose restringe a capacidade de resposta a outros estímulos, modificando-os e os adaptando a novas situações, o hipnotizador deve ter em mente que existem condições em que tal procedimento não deve ser aplicado, como sejam:
Para satisfazer o ego do hipnotizador ou a vontade do paciente, quando não se observar real necessidade de sua aplicação;
Quando o paciente tenha, em virtude de seu transtorno mental, possibilidades de causar dano iminente a si mesmo ou a outros e que tais possibilidades possam aflorar à consciência em virtude da aplicação da hipnose;
A condição do paciente ou o estado mórbido que o acomete não permitir a utilização de técnicas hipnoterápicas adequadas que realmente o beneficiem;
Na maioria dos casos de psicóticos, esquizofrênicos e oligofrênicos que poderão apresentar transtornos mentais intensos em virtude da redução de sua resistência ao estado mórbido que apresentam;
Não sendo a hipnose uma panacéia universal, não deve ser aplicada de maneira indiscriminada, ou seja, em qualquer caso;
A hipnose não deve ser utilizada simplesmente para remoção de sintomas, necessários à caracterização da doença que acomete o paciente, salvo se isso for rigorosamente indicado;
O profissional que aplica a hipnose não deve extrapolar os limites de sua profissão no tratamento de seus pacientes;
A hipnose não deve ser utilizada com fins de entretenimento, exibição ou exposição de pessoas para demonstrar falsos poderes do hipnotizador, o que é condenável;
Na aplicação da hipnose deve-se respeitar as regras morais que regem o sigilo profissional e dentro de princípios éticos que respeitam a dignidade do paciente;
Os conselhos, as orientações feitas sob hipnose e as sugestões pós-hipnóticas devem respeitar os padrões sócio-culturais do paciente;
Os que aplicam a hipnose devem ser profissionais capazes, éticos e competentes, educados em seu uso por professores capacitados;
O paciente deve ser alvo de toda a atenção do profissional que deve utilizar o melhor de seu conhecimento para aliviar seu sofrimento.
A finalidade de se impor a beneficência e a filantropia justifica-se quando se leva em consideração que a aplicação de métodos terapêuticos visa prevenir ou aliviar a dor ou o sofrimento do próximo; a da não-maleficência para aliviar ou afastar uma dor que acomete o paciente.
Estes princípios fundamentam-se nos seguintes ensinamentos de Hipócrates: “Usarei o tratamento para o bem dos enfermos, segundo minha capacidade de juízo, mas nunca para fazer o mal e a injustiça. Em relação às doenças, criarei o hábito de socorrer sempre, procurando não causar dano”.
AUTONOMIA
A autonomia pressupõe a virtude da liberdade e permite que o indivíduo exerça o livre arbítrio que lhe proporciona fazer suas próprias escolhas. A autonomia inclui a possibilidade de decidirmos por nossa própria vida, sem nos autorizar a decidir pela vida dos outros.
A autonomia frente às relações humanas pode oscilar entre a liberdade de opção total dos indivíduos e a atitude paternalista da parte de outros, impondo submissão. Essa oscilação pode ocorrer desde uma autonomia restrita frente a um forte paternalismo até uma poderosa autonomia frente a um paternalismo fraco.
Nem sempre a emoção e a razão estão equilibradas e em consonância. Quando isso não ocorre, surgem os conflitos que se contrapõem à liberdade de opção que a autonomia pressupõe. Quando esse conflito acontece no plano mental gera uma ação que denominamos de pensamento. Será ele que nos levará a decidir a atitude a tomar, de maneira frente a um problema, de forma individual, e aliviar as tensões geradas, evitando-se o estresse. A autonomia liga-se então a uma escolha reflexiva e individual, limitada pelas possibilidades que a realidade impõe, gerando um determinado comportamento. O individuo então, precisa usar da competência atribuída pela sociedade e o direito à liberdade de ação individual e social.
Na relação profissional-paciente a autonomia é tratada dentro do âmbito profissional visando a um bem comum e à preservação dessa relação para que seja direcionada no sentido de se efetuar um tratamento, que se fará, respeitando a autonomia de ambas as partes.
A própria escolha do profissional deve ser feita de forma autônoma pelo paciente. Muitas vezes é feita pelos seus responsáveis. A própria doença em curso pode, portanto, limitar a autonomia e o direito de escolha.
A escolha autônoma condiciona-se em primeiro lugar, à competência para exercê-la, tanto do profissional quanto do paciente, pois este em última análise exerce a competência de escolher ou de aceitar quem vai orientar seu tratamento. Em segundo lugar, a aceitação de sua existência como direito do outro de decidir sobre a orientação do tratamento. Para exercer o direito de escolha do método de tratamento o profissional deve estabelecer opções que devem ser oferecidas ao paciente, pois sem opção não há possibilidade de se escolher. Como se nota, a própria relação profissional-paciente apresenta limites que devem ser respeitados reciprocamente e discutidos de maneira cordial.
O respeito à autonomia em saúde mental não assegura ao paciente e nem ao profissional liberdade ampla e irrestrita, uma vez que na prática ela não existe, sendo apenas um ideal. Na prática a relação profissional baseia-se na competência, na confiança e na confidencialidade.
Na relação profissional, são essas características que irão determinar o quanto as pessoas podem e devem se encontrar acessíveis. Por outro lado, os limites dessa relação podem variar desde uma autonomia forte e um paternalismo fraco (o paciente relata ao psiquiatra que além dos fármacos de que faz uso, ele se submete a uma terapia com ênfase em hipnose, o que é aceito pelo terapeuta), até um paternalismo forte e uma autonomia fraca (quando o psiquiatra convence um paciente, que não deseja se internar a continuar seu tratamento internado, para obter um resultado mais satisfatório).
Para que a relação baseada na autonomia das pessoas aconteça, é necessário que o profissional respeite e considere seus valores e anseios, bem como os valores e anseios do paciente.
JUSTIÇA
O principio da justiça tem duas vertentes: a individual que a sociedade concede ao indivíduo e a social, quando a sociedade é concebida como um todo.
Pressupõe a relevância da pesquisa e sua destinação sócio-humanitária. E a pesquisa ocorre também na escolha do método de tratamento mais adequado. Deve-se considerar os interesses envolvidos, utilização de recursos sem qualquer tipo de discriminação e igual retorno dos benefícios decorrentes da atuação profissional, no tocante à pesquisa dos métodos empregados, sua eficácia além da sua aceitação pelo paciente.
Locke em 1690, descreveu a justiça individual como parte dos direitos do ser humano (3). São os direitos humanos, civis e políticos: direito à vida, à saúde à integridade física, à liberdade, à propriedade e o direito de defesa em caso de ameaça. Tais direitos para que possam converter-se em bem comum, necessitam de um pacto, um contrato.
Esse contrato pode ser verbal ou escrito e objetiva atingir a justiça social, entendendo como tal uma lei vigente e aceita, conhecida e firme para que tenha utilidade como consenso de norma para o justo e o injusto. É este um novo conceito de justiça distributiva: a justiça como liberdade contratual.
A bioética representa uma diretriz na difícil tarefa de decidir entre ações que afetam interesses distintos. Evidentemente, as pressões e as dificuldades são inúmeras, desde os aspectos relacionados à carreira universitária – produtividade acadêmica, questão salarial, etc – às vaidades pessoais, à curiosidade do paciente em se submeter à técnica, à necessidade de se tratar a patologia que acomete o paciente, à influencia da industria farmacêutica, além de outras questões sociais mais amplas.
BIBLIOGRAFIA
Cláudio Cohen – Bioética e Psiquiatria: considerações sobre autonomia, beneficência, não maledicência e equidade.Ética e Psiquiatria. CREMESP – 2007; 157-165.
Kerr-Corrêa & Gutierrez Pilar, Lecussán – Ética, pesquisa e ensino em Psiquiatria. Ética e Psiquiatria – CREMESP- 2007; 37-52.
Cohen C, Segre M. Breve discurso sobre valores, moral, eticidade e ética. Bioética-1994; 2: 19-24.
World Psychiatric Association. Declaration of Madrid. In: 10th. World Congress in Psychiatry: Madrid-1996.
Moura Fé A. – Conflitos Éticos em Psiquiatria. In : Brasil. Conselho Federal de Medicina. Brasília, DF: CFM; 1993: 179-202.
Hemeroteca da Soc. Hipnose Médica de São Paulo – Postulados éticos. Excertos dos Estatutos. 2000
(*)Joel Priori Maia é médico psiquiatra formado pela UNIFESP (Escola Paulista de Medicina), Presidente da Associação de Hipnose do Estado de São Paulo, Assessor Técnico Médico do Hospital e Maternidade São Cristóvão, Delegado Regional Leste-Capital do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo
Diretor Conselheiro da Associação dos Hospitais do Estado de São Paulo, Membro didata da Associação de Hipnose do Estado de São Paulo e Membro Pleno da Divisão Nacional do Brasil da The International Society for Clinical and Experimental Hypnosis. Associado da Associação Brasileira de Psiquiatria e da Associação Paulista de Medicina
PSICOTERAPIA E HIPNOSE
HIPNOSE
ESTADO DE ESTREITAMENTO DA CONSCIÊNCIA PROVOCADO
ARTIFICIALMENTE, QUE MUITAS VEZES SE PARECE COM O
SONO, MAS QUE DELE SE DIFERENCIA PELO APARECIMENTO
ESPONTÂNEO OU EM RESPOSTA A UM DETERMINADO
ESTÍMULO VERBAL (OU OUTRO QUALQUER) DE UMA SÉRIE DE FENÔMENOS ORGÂNICOS E/OU COGNITIVOS.
HIPNOLOGIA
ESTUDO DA NATUREZA E INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA DOS FENÔMENOS HIPNÓTICOS.
HIPNOTERAPIA
TERAPIA FEITA ATRAVÉS DA HIPNOSE.
HIPNOTISTA
PROFISSIONAL ESPECIALIZADO QUE SE UTILIZA DA HIPNOSE DENTRO SUA ÁREA DE ATUAÇÃO.
HIPNIATRIA
PROCEDIMENTO OU ATO MÉDICO QUE UTILIZA A HIPNOSE COMO PARTE PREDOMINANTE DO CONJUNTO TERAPÊUTICO.
DEHIPNOTIZAÇÃO
ATO DE RETIRAR O PACIENTE DO ESTADO HIPNÓTICO.