A Odontologia Psicossomática, a Psicanálise e a Psicologia interagindo na Relação Profissional - Pac
Este artigo é parte integrante da Monografia de Conclusão do Curso de Psicossomática na ABMP-SP – 2004, publicado anteriormente no site da ABMP-sp http://www.psicossomatica-sp.org.br/artigos24.html
Dra. Sonia Pineda Vicente (*)
* Membro da Associação Paulista de Cirurgiões Dentistas (APCD), do Grupo Brasileiro de
Professores de odontopediatria e Ortodontia (GRUPO), da Associação Brasileira de Medicina
Psicossomática (ABMPSP), da Associação de Estudos Psicanalíticos de São Paulo (AEPSP) e da
Associação de Hipnose do Estado de São Paulo (AHIESP).
I - HISTÓRICO
O profissional que tem conhecimentos de psicossomática, de psicanálise e de psicologia traz à luz uma re-humanização da odontologia, preparando assim um indivíduo mais consciente de si mesmo e dos cuidados com sua saúde bucal.
JOHN NEMIAH (1976)34 aborda a importância da entrevista com seu paciente e o quanto a primeira consulta é importante para um prognóstico.
CELIA JORGE (1997)24 relata sobre a necessidade de que esses profissionais tenham condições de objetividade em sua avaliação, isto é, sabendo o que vê, para que vê. É preciso que juntamente com o raciocínio analítico haja a capacidade de perceber a pessoa como ser indivisível, total em suas funções cerebrais intuitivas, emocionais, sintéticas e espirituais.
Ao longo de vinte e cinco anos de profissão já me surpreendi com diferentes situações e até mesmo inusitadas, que me fizeram buscar sempre e cada vez mais o autoconhecimento através da psicanálise, para melhor compreender meu paciente, aquele ser humano que está diante de mim, muitas vezes “ïndefeso, com medo, ansioso” para compreender problemas que podem até não ser de ordem dentária.
VIANNA (1989)43 fala do conceito de psicossomática, que foi usado pela primeira vez em 1922, pela Dra. Dunbar, indica apenas um dos sentidos da ação mútua (da psique para o soma) e, por outro lado, sendo uma palavra composta, ela sugere a idéia de separação, contrariando, assim, o seu próprio sentido de unidade para reforçar a noção dualista de mente-corpo.
Contudo, apesar de outros termos propostos para substituí-la, ela se impôs e é usada para exprimir tanto os fenômenos psicossomáticos como somático-psíquicos.
MILLER DE PAIVA (1994)30,32 relata que a psicossomática visa raízes inconscientes das relações interpessoais. Os estudos e a dedicação de profissionais da Medicina, Odontologia, Antropologia, Psicologia e Psicanálise, ao longo dos tempos demonstram um grande esforço em concatenar os conflitos que impedem a harmonização mente-corpo.
Assim, quando constatamos que nosso poder de observação está se dispersando para a tecnologia avançada, como: clonagem de dentes, lazer para todo tipo de intervenção odontológica, avanços tecnológicos na bio – compatibilidade de novos materiais, realmente uma tecnologia de ponta, sistemas de vídeo-câmera, fotos intrabucais digitalizadas, “odontologia de primeiro mundo”, exames auxiliares de diagnóstico, que na maioria das vezes não passam de elementos distanciadores entre profissional e paciente. Muitas vezes não conhecemos se quer os hábitos alimentares de nossos pacientes, qual lado da arcada ele mastiga, é necessário re-educar para então elaborar um planejamento ortodôntico, protético... Ou uma reabilitação bucal completa.
Na maior parte do tempo, nós não conseguimos responder a tantos questionamentos porque nos esquecemos de nós mesmos, de nossos gostos alimentares, de que nosso sistema digestivo começa na cavidade bucal, onde este grande sistema recebe alimentos para serem apreendidos, cortados, dilacerados e triturados por 32, 28... quantos dentes?
Como anda esta nossa fantástica engrenagem que inicia o processo de formação do bolo alimentar? De que lado ela trabalha mais? De que lado sente mais os sabores, diferenças de temperaturas, sensibilidades, cansaços mastigatórios?
Quem é o nosso paciente? O que espera de nós? Considerando que não somos máquinas, que a doença não é uma avaria, e muito menos que, o profissional de saúde não é um técnico para consertá-la, nos questionamos: onde está a humanização dos profissionais da saúde? O que é o “dom” na profissão? O que é está “benção divina” que uns não têm? E então, onde se apóia a nossa relação com nosso paciente? Tecnologia ou sensibilidade?
II - PROPOSIÇÃO
A proposta deste trabalho foi estudar alguns aspectos de situações clínicas do meu consultório, no período de 25anos, com a colaboração de 30 dentistas entrevistados, o que me permitiu estabelecer alguns parâmetros entre a relação profissional-paciente e o sucesso profissional.
III - REVISÃO DA LITERATURA E COMENTÁRIOS
É comum ouvirmos do profissional da área de saúde “isto é psicossomático”... , quando quer referir-se a um distúrbio relatado pelo paciente, difícil de detectar ou de diagnóstico indefinido. A sintomatologia apresentada pelo paciente sem sinais clínicos ou radiográficos sugere na maioria das vezes, distúrbio de natureza emocional. Podemos assim lembrar, que existe uma interação de distúrbios emocionais com o organismo somático muito bem definido. Devemos, porém, cuidar para que o termo “psicossomático” não seja banalizado, utilizando-o como sinônimo de “não sei do que se trata!” BORAKS (2000)9.
AMURATTI (2001)1 considera que o homem é um ser único, individual e assim deve ser seu tratamento, levando em conta que cada órgão e sistema é reflexo e conseqüência de outro, do meio e do corpo como um todo. Seguindo este raciocínio pode-se concluir que a boca é muito mais que uma cavidade com dentes a serem restaurados, é antes um espelho do corpo e da alma do indivíduo e o dentista é uma peça fundamental no restabelecimento do equilíbrio da saúde na sua forma mais plena.
Os dados de anamnese, somados as queixas feitas pelo paciente durante o tratamento odontológico, podem sugerir ao cirurgião dentista processos patológicos e isto requer encaminhamento ao médico, ao terapeuta psicólogo, psicanalista, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, e outros profissionais da área de saúde. Remontar o quebra-cabeça significa buscar o elo perdido na fragmentação do homem, promovendo uma abordagem holística do mesmo. Saber ouvir os dados de anamnese, juntar os fragmentos da história de vida relatados, dos sintomas mencionados, do funcionamento do todo, é o caminho que conduz ao paciente para o diagnóstico e cura, quando feitos de forma consciente e precoce. BIASI (2000)4 , CARVALHO (2004)11, CEZIMBRA (2001)12, MILLER DE PAIVA (1994)31, VARELLIS (2000)41, VICENTE (2002)44.
GARRAFA (1994 e 1997)21,22 considera que a relação do cirurgião dentista com seu paciente vai muito além das poucas dezenas de palavras que normalmente estes dois personagens e sujeitos do processo clínico-estomatológico trocam entre si no exíguo e restritivo espaço de um consultório particular ou de um serviço público. Esta relação deve ser permeada não só pelos princípios éticos estabelecidos na legislação odontológica através dos Conselhos de Classe como, principalmente, por parâmetros ético-morais que determinam a relação de um profissional de saúde com o doente que o procura para amenizar alguma forma de sofrimento.
Tais parâmetros necessitam ser bem estudados e aplicados pelos cirurgiões dentistas, não só pelo respeito devido ao paciente, como também pela necessidade que se impõe, cada dia mais, de que o paciente seja integralmente informado sobre o que está sendo realizado no seu corpo. Além disso, tudo, um relacionamento positivo e agradável sempre contribui, aumentando as possibilidades de sucesso na missão terapêutica.
Toda e qualquer ação clínica a ser exercida sobre o paciente, deve contar com o “consentimento livre e esclarecido”. Trata-se, assim, do estudo e análise de situações que usualmente envolvem duas pessoas dentro de um quadro de diferentes situações que nasçam a partir do paciente, do profissional ou como produto da relação estabelecida entre os dois. Além disso, podem participar ainda desse contexto outras pessoas externas como: auxiliares odontológicos: THDs, ACDs, secretárias e protéticos, familiares do paciente, amigos, etc. interferindo direta ou indiretamente no processo de construção (ou desconstrução...) da relação.
O sucesso profissional está diretamente associado à qualidade da relação interpessoal que ocorre entre o cirurgião – dentista e seu paciente, assim como a relação estabelecida com todos os profissionais da equipe encarregados da assistência e atendimento ao paciente, dentro do consultório odontológico. É necessário que a equipe fale a mesma linguagem do profissional, e que este, além de manter-se atualizado na profissão, conhecendo e gostando do que faz, tenha sempre a certeza de que fez o melhor para seu paciente. VICENTE (2002)44 .
BALINT (1988)3, em sua obra, deu ênfase à "aliança terapêutica" que deve existir no vínculo profissional-paciente, como propulsora de um bom atendimento.
Para que haja essa boa relação, é necessária atenção aos elementos que a compõem. A relação profissional-paciente contem elementos racionais, irracionais, realísticos, irrealísticos, maduros e infantis, fantasiosos, conscientes e inconscientes, que devem ser trabalhados, elaborados para que os vínculos sejam formados e uma boa relação seja estabelecida. [BLAY NETO (2001)8; FERNANDES e colab. (2003)13; OLIVEIRA Jr. e colab.(1977)35; SANDLER (1989)37; VIANA (1998)42; ZIMERMAM (1993)46].
TAHKA (1988)39 relata que na maioria dos pacientes, as atitudes transferenciais são, predominantemente, positivas, e contêm sentimentos que foram um dia dirigidos para pais bons, que eram, ao mesmo tempo, sentidos e percebidos como a principal fonte de força e segurança. Os sentimentos transferenciais do paciente para com o profissional também podem ser negativos. Neste caso, a atitude do paciente se tinge de algum matiz da escala negativa de sentimentos, tais como a desconfiança, a inveja, o desprezo, a irritação ou até mesmo a ira ou a raiva abertas.
NATRIELLI e colab. (1993)33 relatam que no processo de desenvolvimento e formação da identidade de uma pessoa, é importante notar como foi sua infância, especialmente no período mais primitivo da relação mãe-bebê, em que a boca se encarrega de reter ou eliminar, rasgando, cortando, mastigando, deglutindo ou vomitando. Na clínica odontológica, gostaríamos de chamar atenção para alguns pontos que nos parecem valiosos, destacando especialmente a forma como os clientes lidam, dentro de si próprios, com os elementos que dizem respeito a sua identidade, na medida em que esses elementos são intimamente ligados a conteúdos materno-paternos.
Por isto, o dentista está freqüentemente exposto aos ataques da Identificação Projetiva de seus clientes, recebendo cargas inconscientes maciças de ódio, agressividade, possessividade, inveja, ciúme, avareza e etc., manifestadas através de discussões sobre preço, reclamações quanto à qualidade do serviço, demora na liquidação das contas e muitos outros motivos; pois essas pessoas estão se defrontando e atacando seus próprios objetos internos, fantasiosamente depositados por eles na pessoa do profissional, revivendo assim uma relação primitiva boca-seio materno, que Melanie Klein denominou de posição esquizo-paranóide.
Essa carga emocional advinda do momento projetivo faz com que o profissional incapaz de assimilar estes conteúdos, termine seu dia de trabalho exausto, esvaído de suas energias, pois dessas acusações e das “evacuações” que acontecem, muitas vezes o paciente interrompe o tratamento, desaparece do consultório, e continuará de profissional em profissional buscando alguém que contenha suas emoções, suas culpas e suas “neuras”. [KLEIN (1964,1965)25,26; MARINO (1975)28; MARMOR (1981)29; STEINER (1977)38].
LACAN (1979)27 nos fala que o inconsciente se constitui como linguagem e a partir dos três anos o pensamento operatório secundário é constituído com a elaboração psíquica da linguagem, sendo que nos processos de esvaziamentos, o paciente regride ao pensamento operatório primário, não elaborado, e por isso seus conteúdos são carregados de emoções arcaicas, regredidas à primeira infância, não compreendidas nem por ele mesmo.
Aqui referencio BION (1975,1991,1991)5,6,7 para melhor compreender este tipo de comunicação do paciente odontológico, pois a relação profissional-paciente estará no mesmo universo relacional se o pensamento for do tipo predominantemente neurótico, porém, se o nosso paciente neurótico apresenta “partes psicóticas” exacerbadas fará estes esvaziamentos sobre o profissional, acarretando uma dificuldade de compreensão se o dentista não estiver preparado para captar essas “emoções”; e esta será mais dificultada se o paciente apresenta uma comunicação apenas em nível psicótico. Como o profissional estabelecerá esta relação? Como reconhecer nossos núcleos psicóticos para entrar na psicose de nosso paciente, entender seus pensamentos e transitar sem se afetar e depois sair e então compreender este processo que é do paciente, e poder transformar estes elementos ruins em elementos bons e dar uma ressignificação.
E assim, temos próteses que não se encaixam, arestas que não se aplainam, jaquetas e coroas difíceis de adaptarem, matérias primas que se quebram, sem que o dentista possa atinar com seu conteúdo latente.
NATRIELLI e colaboradores (1993)33 nos relatam que a identificação projetiva aparece nos consultórios dos psicoterapeutas com certa freqüência, trazidas por pacientes dentistas que relatam as dificuldades que têm de lidar com determinado cliente: “ele me causa certo mal estar, um incômodo que não sei explicar bem e que me deixa deprimido”. Nesse momento, o dentista está sendo depositário das angústias e ansiedades do seu cliente, que identifica nele o pai bom/mãe boa, ou pai mau/mãe-má.
Entretanto, é preciso observar que o oposto também pode ocorrer, pois o dentista, que não conseguiu uma boa resolução das suas dificuldades e conteúdos internos, que tem situações arcaicas e primitivas não-resolvidas pode, inconscientemente projetá-las no seu cliente que, passivo e indefeso, receberia seus ataques agressivo-destrutivos. E nesse quadro podemos ter obturações mal feitas, canais mal tratados, extrações desnecessárias, próteses desajustadas e por aí afora...
Por outro lado, temos a questão do esquema corporal, como esclarece CAPISANO (1994)10 : “A imagem do corpo estruturaliza-se em nossa mente no contato do indivíduo consigo mesmo e com o mundo que o rodeia. Sob o primado do inconsciente entram em sua formação, contribuições anatômicas, fisiológicas, neurológicas, sociológicas, etc. A imagem corporal é a figuração do corpo em nossa mente.”
WINNICOTT (1975)45 em sua obra “O brincar e a realidade, nos ensina que o natural é o brincar, e que as crianças brincam com mais facilidade quando a outra pessoa pode e está livre para ser brincalhona”.
Imagine como esta facilidade de brincar, rir, fazer rir, este prazer em acolher e amparar nosso paciente na cadeira odontológica irá facilitar nosso trabalho, diminuindo os medos fantasmáticos que ele traz dentro de si, e tornando-o um co-doutor nos cuidados com sua saúde bucal.
Para melhor compreensão deste assunto é necessário revisar na literatura de FREUD 14,15,16,17,18e19 o tema que engloba as reações, as respostas de qualquer ser humano frente aos estímulos que recebe. É importante descrever sobre as emoções, sobre os instintos e o desenvolvimento psiquicossexual infantil. Discutindo estes temas com os profissionais entrevistados observamos o quanto é necessário trabalhar este grupo que não conseguem lidar com tantas emoções, o que deu uma margem para outra pesquisa: como cuidar desde cuidador da saúde bucal que anda tão estressado, deprimido, desestimulado e até com falta de pacientes em seus consultórios, sem o sucesso profissional que ele tanto almeja.
A relação profissional-paciente é uma relação de expectativas e esperanças mútuas; o doente espera alívio e, se possível, cura; o profissional espera reconhecimento de seu paciente e pagamento do trabalho realizado. A expectativa pode ser de tal ordem, em cada um, que há o risco de as relações de troca serem transformadas em relações de força (JEAMMET e colab., 1989)23 , o que poderá ser contornado se o profissional conhecer estes processos inconscientes que interagem nesta relação.
BADRA (1987)2 relata que a maioria dos pacientes tem alguma apreensão acerca dos tratamentos dentários, e em alguns casos a técnica da hipnose auxilia o dentista na realização do tratamento.
Todas as atitudes do profissional repercutem sobre o paciente e terão significado terapêutico ou antiterapêutico segundo as vivências que despertarão no paciente e nele, profissional. PERESTRELLO (1982)36 .
A pessoa é uma unidade psicossomática, devendo ser compreendida como um ser total, indivisível, e não dicotomizada em mente e corpo. A pessoa é um ser humano, um corpo vivo, um conjunto de órgãos, tecidos e células, ordenadamente estruturadas e dinamizados por várias funções orgânicas e psíquicas, isto é, pela vida. VIANNA (1989)43 .
Hoje, as escolas brasileiras de odontologia têm mostrado interesse à noção da unidade orgânica, a este ser biopsiquicossocial-espiritual que constitui o paciente odontológico, e a procura dos profissionais nos campos da psicossomática, psicanálise e psicologia mostra o grande interesse em compreender melhor este ser paradoxo, que é o ser humano, e assim poder estabelecer uma melhor relação profissional – paciente, visando um crescimento humano, científico e sucesso na profissão. [BADRA (1987)2, TENORIO (2000)40, VICENTE (2002)44].
IV - CONCLUSÕES
- A relação profissional-paciente é uma relação de expectativas e esperanças mútuas; o paciente espera alívio e, se possível, cura, além da recuperação estética que todo trabalho odontológico enquadra; o profissional espera reconhecimento de seu paciente, pagamento pelo trabalho realizado, para que as expectativas envolvidas em todo processo da relação profissional – paciente seja de tal forma satisfatória para ambas as partes e tenha como resultado a realização e o sucesso profissional.
- O conhecimento de psicossomática, psicanálise e psicologia é importante para todas as áreas da saúde, em especial a odontologia, pois só assim o profissional terá um conhecimento pleno do que é este ser humano biopsicossocial-espiritual que vem lhe procurar para curar uma dor, para uma correção de dentes mal posicionados, para restaurar um sorriso, para reabilitar uma oclusão... Enfim para restabelecer uma parte do seu “ser”!
- O dentista deve ter seu cuidador, um terapeuta que o oriente no reconhecimento das emoções, das reações, das respostas que qualquer ser humano pode ter frente aos estímulos que recebe.
V - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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